Assim que ouviu o sino, Julian retirou seu lanche da mochila, saiu de sua sala e começou a descer a escadaria que o levaria ao pátio externo. O local estava apinhado de crianças. Para qualquer lugar que Julian olhasse, ele veria meninos e meninas aos gritos, gargalhadas e em brincadeiras durante o recreio. Seus dias de estudante na Gilberto Maia eram de pura diversão!
No entanto, ao atingir o último lance da escada, deparou-se com uma estranha aglomeração. À sua esquerda, próximos ao coqueiro centenário que emoldurava a escola, vários estudantes formavam um círculo e gritavam palavras que, para ele, soavam desconexas. Aproximou-se, afastou algumas pessoas e, qual não foi a sua surpresa ao entrever duas meninas rolando sobre a brita que margeava a calçada, engalfinhando-se, grudadas pelos cabelos.
Atônito, Julian percebeu que uma delas, era Val, sua colega de turma e melhor amiga. Imediatamente, abaixou-se e tentou apartar a briga. Segurou Val pelos braços e ajudou-a a desvencilhar-se de sua oponente. Auxiliou-a a levantar-se com grande dificuldade, pois ambas estavam fora si. Val debatia-se furiosa, irascível, bufante...
Quando finalmente colocou-a de pé, Val fitou-o, calada, os olhos abespinhados soltavam fogo, no supercílio esquerdo um fio de sangue escorria, os cabelos desgrenhados eram surrados pelo vento; a gritaria continuava ensurdecedora. Sem pestanejar, sem dizer palavra, neurastênica, Val esbofeteou o rosto de Julian, intempestivamente.
O impacto da bofetada foi tão violento que Julian rodopiou na brita deixando cair seu lanche. Naquele instante, tudo o que queria era escafeder-se dali. Os gritos se intensificaram; uma profusão de risadas e vaias emergiam por todos os lados e Julian, envergonhado, correu para os fundos da escola. Lá, sentou-se na mureta do jardim e chorou copiosamente. Sem nada entender, soluçava! Nem recolhera do chão o sanduíche que sua mãe lhe preparara carinhosamente.
Lembrou-se de verificar os bolsos de seu moletom. Enfiou a mão no esquerdo e nada. Conferiu então o direito e retirou dele uma bela caixinha vermelha com um laço de fita azul e observou-a como quem contempla um tesouro recém descoberto... O tempo congelara! Julian permaneceu estático por longos minutos olhando fixamente aquela caixa até que sentiu alguém tocar-lhe o ombro. Foi quando recebeu o aviso de que o sinal para o retorno à aula já havia sido dado.
Levantou-se lenta e pesarosamente. Acomodou a caixinha novamente em seu bolso. Caminhou vagarosamente em direção a sua sala. Mal havia contornado o canteiro, cruzou com Val. Ela seguia rapidamente para o banheiro, acompanhada da inspetora, provavelmente para recompor-se. Ela o mirou com o mesmo olhar de cólera e sem nada dizer, continuou.
Julian pediu licença à professora, entrou, sentou-se em sua cadeira. Alguns instantes depois, Val fez o mesmo. Dessa vez, não se olharam. Julian permaneceu imóvel na carteira até o término da aula.
Quando chegou em casa, disse aos pais que não se sentia bem. Não quis almoçar; dirigiu-se ao seu quarto, dispôs a mochila sobre a escrivaninha, retirou a caixinha do bolso, pegou um lápis no estojo, escreveu algo e guardou-a em seu guarda-roupa. Deitou-se na cama, chorou, dormiu.
Julian e Val nunca mais se falaram. O episódio na brita silenciou a amizade de anos. Quando se esbarravam, ignoravam-se.
O último ano do ensino fundamental e o ensino médio não foram mais os mesmos sem o colorido daquela amizade. Julian tornou-se um adolescente fugidio, comedido e introspectivo.
Os caminhos de Julian e Val nunca mais se cruzaram. Val entrou para a faculdade de direito, Julian para a de administração. Após a formatura, Val conseguiu um estágio em um grande escritório de advocacia; Julian dedicou-se à empresa da família.
Nove anos se passaram desde o 9º ano na Gilberto Maia. Quase uma década!
Certa vez, Val precisou permanecer no escritório, pois acompanharia a advogada sênior da empresa em uma importante audiência no Ministério do Trabalho. Decidiu então fazer um lanche rápido por lá mesmo. Dirigiu-se até o refeitório e ao entrar no local, a televisão ligada lhe chamou a atenção. A reportagem anunciava um trágico acidente automobilístico com vítimas fatais e, dentre elas, Val reconhecera um rosto familiar, era Julian. Seu coração estilhaçou-se.
Nunca mais haviam se falado. Nunca mais havia rido das bobagens que Julian fazia, intencionalmente, para vê-la sorrir. Nunca mais haviam compartilhado as férias na fazenda de seu tio. Tudo por que ela, envergonhada e orgulhosa não conseguira desculpar-se por aquele momento insano de fúria. E agora, nunca mais o veria.
Depois de quinze dias, Val procurou a família de Julian. Chegou até a casa, tocou a campainha, em pouco tempo, a porta foi aberta; Dona Laura reconheceu-a e desesperadamente lançou-se ao seu encontro e abraçou-a fortemente enquanto soluçava.
Dona Laura tentou recompor-se, convidou-a a entrar, acomodou-a no sofá. Estava só em casa. Ofereceu-lhe chá de camomila e biscoitos de nata; falou por horas a fio, emocionadamente sobre o filho e o quanto a família lamentava sua morte repentina. Val resignou-se a ouvi-la, quase que silenciosamente, interagindo, por vezes, com pequenas frases e acenos de mão e cabeça.
Seu pensamento estava em Julian, mas distante dali. Lembrava-se apenas daquele dia tão incomum; da brita, da gritaria, do tapa que lhe dera, sem razão alguma. Recordou-se também do que lera em uma revista qualquer, no escritório, algumas semanas antes da passagem de Julian: “somos frutos de nossas escolhas e nossas ações geram consequências (boas ou ruins), com as quais precisaremos saber lidar”.
De repente, Dona Laura levantou-se e disse-lhe que aguardasse um instante. Pouco depois retornou. Trazia nas mãos uma caixinha vermelha, envolta por um lindo laço de fita azul. Vermelho e azul eram as cores preferidas de Val. Estendeu os braços e entregou-a à Val. Disse-lhe que a havia encontrado quando organizava o guarda-roupa do filho, entre suas roupas com o seguinte recado: “Um dia entregarei à Val”.
Val emocionou-se. Levou a mão esquerda até o supercílio e tocou de leve uma pequena cicatriz. Seus olhos marejaram. “O que havia naquela caixa?” perguntava-se, enquanto a desembrulhava cuidadosamente.
“Espere-me hoje às 17:00 horas no portão de sua casa. Você aceita namorar comigo? Eu te amo desde a primeira série.” dizia o carinhoso e caprichado bilhete escrito à mão que acompanhava um pingente de prata em formato de coração acomodado no fundo da caixinha.
Val desmoronou interna e externamente, recostando-se no sofá.
Lembrou-se novamente da briga. Naquele instante, diante da mãe de Julian, sentiu doer em si mesma, aquela bofetada, muito mais do que provavelmente doera no rosto de seu melhor amigo.
Comentários
Esse presente na caixinha é muito sofisticado como o texto.
Marlene Santos da Silva | 13/09/2022 ás 07:55 Responder ComentáriosMarlene Santos, muito obrigado por sua apreciação. Abraço.
Romeu Donatti | 15/09/2022 ás 20:47 Responder Comentários