As quatro enxadas

Contos | Valter Figueira
Publicado em 14 de Fevereiro de 2022 ás 14h 56min

 

Zé estava ciente que tinha que sair de casa o mais cedo possível para procurar serviço. Irritado, não era de agora, percebia que o mundo vem prevendo uma escassez.

O plantio de café está acabando. Culpa de quem? Do governo que não cuida desse povo miserável que passa fome? — questionava-se.

E por falar em fome, sua reserva de mantimentos estava no fim. Ainda bem que a mulher tinha leite nos peitos para dar sustento ao guri. Mas se ela não comer o leite acaba! Logo agora que tem um pequeno de três meses em casa o patrão resolve trocar o cafezal por pasto. Não vai ter lugar para todos — disse ele.

E então foi dispensado. Dispensou todos. Só a família do dono dava conta de cuidar do gado.

Ainda bem que o compadre João emprestou meia-água nos fundos para o Zé passar uns tempos. Quem sabe poderia virar boia-fria e subir no primeiro caminhão que aparecesse na vila. Mas lá também estavam dispensando trabalhadores.

Os seus pertences eram poucos. O de mais valia era o berço do neném, não era novo e foi oferecido por uma família amiga. Não teria mais nenhuma serventia, pois as crianças já haviam  crescido.

Soube de uma informação que na fazenda do Sr. Fabriciano, há uma boa caminhada da vila, estavam precisando de uma família para serviços de enxadas. Zé foi, saiu antes do sol apontar no horizonte.

Levava no embornal uma marmita com pouca coisa: mandioca cozida, arroz e dois ovos fritos, acreditava que não teria como voltar até a hora do almoço. Água não levou. Deve ter riacho pelo caminho.  E depois o povo da roça nunca nega água para quem tem sede — pensou.

Foi caminhando, cruzando estradas e trilhas. Cafezais e pastos, estes muitos maiores, àqueles já se acabando.

Enquanto caminhava pensava: “Dá dó ver os cafezais morrendo! Já vai longe o tempo da fartura do café quando tinha serviço para todos. Ou melhor, todos que tinham coragem de trabalhar. Chorar não é bom, trabalhar é preciso para se viver e serviço terá”.

Chegando à fazenda foi logo questionando pelo Fabriciano. Procura daqui, descansa dali, refresca ademais na sombra duma mangueira. Que bom se a vida fosse só sombra e água fresca – dizia ele.

Até que enfim a entrevista com o Sr. Fabriciano, homem bom, matuto, mineiro de Uberaba, distante de um fazendeiro arrogante e cheio de si. Rico sim, mas trabalha na roça com os subordinados. O homem era bom, estava disposto a empregar. A primeira pergunta de Fabriciano para o Zé foi: Quantas enxadas o Sr. tem? Prontamente e sem titubear, o Zé respondeu na lata: Quatro! No que diante da resposta o Sr. Fabriciano disse ao Zé que poderia ocupar uma casa da colônia, a última na beira do cafezal estava vaga.

Zé, todo faceiro mudou no Domingo. Agora pode trabalhar, ganhar dinheiro, dar sustento para a família e talvez sobre dinheiro para substituir sua botina rota, já rasgando. Teve cuidado especial com as enxadas, amolou-as, passou lixa e vela nos cabos.

Na segunda feira esperava as ordens. O Sr. Fabriciano chegou montado em um cavalo branco. Chapéu marrom, esporas prateadas, agora parecia mais com um fazendeiro, garboso, cheiro de si. Foi logo perguntando pela família. Zé orgulhoso mostra-lhe a porta da casa e lá estava a mulher com o guri no colo.

Fabriciano não acredita que houve um mal-entendido. Olha para o outro lado da parede e lá estão quatro enxadas prontas para o trabalho. Esse pessoal da cidade não entende — resmungou Fabriciano ao voltar com as ordens já encomendadas ao Zé.

Será que Fabriciano, o mineiro em terra Paranaense falou mineirês? Quando perguntou ao então candidato a emprego de quantas enxadas tinham na família, na verdade queria dizer, quantas pessoas estavam aptas a trabalhar, e não o número de ferramentas.

O Zé continuou trabalhando sem saber do engano que cometera. O fazendeiro, com gestos de matuto, entendeu que o Zé não mentiu e nem enganou, queria serviço e teve serviço. Fabriciano resmungou consigo mesmo: “um dia ele descobrirá o engano”!

Comentários

Muito bom, parabéns! A enxada do Zé era assim mesmo! Trabalhava como o Zé nunca conseguiu trabalhar sozinho, muito menos com 4 delas! Parabéns; Walter !!

Vera Mascarenhas | 26/02/2022 ás 10:55 Responder Comentários
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