Ainda escrevo cartas

Contos | Dolores Flor
Publicado em 21 de Fevereiro de 2022 ás 09h 21min

Toda semana vou ao correio, parece um ritual. Talvez seja, afinal a muitos anos eu faço isso. Aprendi muito cedo a escrever, e quase ao mesmo tempo a escrever para as pessoas.

Me lembro muito bem quando a minha mãe me trouxe um embrulho. Era algo diferente, não parecia um brinquedo, muito menos uma boneca, que gostava tanto de brincar. Na época eu tinha meus sete anos de idade. E, ela me disse muito bem.

— Filha! Este é um presente diferente. Sei que irá gostar e muito. Mas diferente de outros presentes e brinquedos que estragam e perdem a graça com o tempo. Este objeto é mágico, quanto mais você utilizar mais vai querer usá-lo e, ele poderá fazer parte de toda a sua vida.

Fiquei muito empolgada com tudo aquilo. Peguei o embrulho com cuidado, mesmo estando com muita pressa. No momento que desembrulhava, percebia que se tratava de quatro blocos e quatro pequenos pacotes protegidos com plástico. Mesmo imaginando o que seria não tinha s sua real dimensão, e perguntei para minha mãe:

— Mamãe. O que são, e para que serve?

— São envelopes e papéis de carta. Observe os envelopes são de cores diferentes, tem azul, rosa, amarelo e verde. Neles você poderá colocar as cartas que irá escrever. E, os papéis de carta tem perfume, por isso quando não estiver usando deixe sempre dentro dos saquinhos.

— São maravilhosos mãe. Obrigada!

Cheirei-os por horas. E, cada vez mais sentia aquele perfume penetrar em meus sonhos e em minha alma. Cada perfume me encantava mais e me deixava mais contente com o presente. Os cheiros de pêssego, uva, tutti frutti e morango, depois de tanto brincar com eles, fiquei como escrever uma carta.

— Mãe como escreve-se uma carta? E, para quem eu posso escrever? — Disse mostrando o presente ganho.

— É simples filha. Primeiro pensamos para quem escrever. E, depois o que escrever, podemos conversar para saber como a pessoa estar, contar alguma novidade, ou simplesmente dizer o que se sente. — Me disse ela com uma voz calma e inspiradora.

— Tudo bem mãe.

— Mas, onde você pensa que vai?

— Vou tentar escrever alguma coisa. — E saí pegando meu presente e meu estojo.

— Nada disso! Você irá escrever estas cartas com canetas. — Me mostrando um jogo com quatro canetas de cores diferentes. E, continuou. — Mas, antes de utilizar os papéis de carta deverá rascunhar, as o texto, e só depois de tudo pronto irá passar para a folha definitiva.

Neste momento ela apontou um pequeno caderno que estava na estante, e seria um material de rascunho para eu treinar as minhas primeiras escritas.

Não me lembro bem. Mas acredito ter passado uns três dias rabiscando e reescrevendo. Até que finalmente concluir, queria entregar as cartas. E, mais uma vez a minha mãe me surpreendeu.

— Ótimo. Agora que você escreveu as cartas, vou lhe ajudar a colocar no correio. Hoje não dá mais tempo. Amanhã pela manhã vamos no mercado. E, no caminho passaremos no correio para postar as suas primeiras correspondências.

Foi uma noite mágica, muito empolgante. Quase não dormi. Fiquei pensando como seria maravilhoso aquele momento. Cada vez que pensava mudava alguma coisa. Como seria a pessoa recebendo as minhas cartas, e quando eu receberia de volta. Eram duas cartas para pessoas muito importante, e muito próximas. Mas escrever invés de falar era outra coisa. Pareceria que seria eternizado o que estava ali. E, assim dormi, imaginando e sonhando.

No dia seguinte antes do mercado passamos no correio. Minha mãe endereçou as cartas. Afinal, na época eu não tinha a menor ideia de como se fazia. E selou as cartas. Comprando um punhado de selo, que me mostrou e disse-me.

— Estas são para as suas próximas cartas.

Guardando na bolsa. E, fomos para o mercado.

Naquela semana não falamos mais sobre o assunto. Eu até esquecera um pouco dos papéis de carta. Brinquei e me divertir como sempre. Passados mais alguns dias minha mãe, chega em casa e disse que havia correspondência para mim.

Foi uma emoção única. Minhas primeiras correspondências. Quase não acreditei. Sentir o meu coração disparar, fui correndo abraçar a minha mãe e pegar as minhas primeiras cartas recebidas.

Em seguida corri para o quintal, fui na sombra de uma mangueira que brincávamos muito ali com meus irmãos e irmãs e meus primos e amigas. Mas naquele momento estava eu sozinha. A sombra da mangueira e próximo ao castanhal, que carinhosamente foi apelidado de castanhal rei, pelo seu grande porte. E, por parecer proteger todas as outras árvores menores no quintal.

As remetentes daquelas cartas eram minha avó e a minha mãe. Sim eu convivia com elas, e, sempre estavam por perto. Mas, ler aquelas páginas era diferente. Parecia que tínhamos algum segredo misterioso. E, em minha mente agora fazíamos parte de uma sociedade secreta. Que ninguém poderia entrar, a não ser que fosse convidado. Além de ser algo que nunca poderia se desmanchar, como um nó bem apertado, ou um contrato que nunca seria desfeito.

E, esse hábito de escrever se repete por mais de quarenta anos. Mudou um pouco ao longo dos tempos. As vezes mais frequentes, outras mais escassas. Mas, nunca abandonado.

As pessoas acham estranho escrever carta hoje.

— Por que não manda uma mensagem? Ou então liga?

As vezes respondo que não é a mesma coisa. Ou simplesmente ignoro. Elas nunca vão entender, que para aquilo que realmente é importante. As cartas tem um valor muito maior, e a proximidade que ela propicia é incomparável

Por isso ainda escrevo. Não tem mais os selos. Isso perdeu um pouco o encanto. Porém o sentido ainda persiste. E, mesmo contra todas as tendências conheço pessoas que pensam como eu. Praticam o ato de escrever cartas. E, sabe que isso jamais será substituído por quaisquer facilidades tecnológicas.

Só que hoje é diferente. Ao ir ao correio e acessar a minha caixa postal. Além das correspondências de costume. Tinha também as cartas de pessoas que correspondem comigo atualmente. Mas, uma carta parecia diferente. A carta era da minha mãe, quando a peguei percebi que não era as mesmas de sempre, o volume que era tinha me fez ficar mais atenta. Mas segurei minha empolgação. Seria um sacrilégio abrir ali em público. Fiz os compromissos necessários antes de ir para casa, para abrir.

Fui até a varanda de minha casa. Ali não tinha a mangueira que eu brincava, nem muito menos o castanhal rei. Porém era o lugar apropriado. Era o lugar digno de tão importante ato.

Ao abrir a carta de minha mãe. Era apenas um bilhete, muto breve e simples. Mas de uma generosidade imensa. O bilhete dizia:

— Querida filha, ao arrumarmos algumas coisas de sua vó encontramos a sua primeira carta, e, então resolvi a primeira carta que escreveu para mim. Beijos te amamos. Assinado Mamãe e Vovó.

Comentários

'

Olá! Utilizamos cookies para oferecer melhor experiência, melhorar o desempenho, analisar como você interage em nosso site e personalizar conteúdo. Ao utilizar este site, você concorda com o uso de cookies.