Relutantes raios de sol enveredavam pelas frestas da persiana e modelavam criaturas espetaculares nas paredes brancas daquele pequeno quarto trazendo uma sensação de frescor àquela manhã cinzenta de maio.
Rômulo olhava ao seu redor, inclinando levemente sua cabeça na tentativa de encontrar algo que lhe parecesse familiar. Inutilmente.
Percebeu que estava na cama de um hospital, mas não se lembrava de absolutamente nada. Sentia-se sonolento, entorpecido, confuso. As pálpebras lhe pesavam sobremaneira. A cabeça lhe doía, como se a martelassem ininterruptamente.
De repente, uma lufada de ar quente invadiu o ambiente, tão logo a porta se abriu e uma figura, igualmente desconhecida, aproximou-se. Pode também ouvir vozes, gritos e choros misturadas a passos apressados que percorriam os corredores.
Palavras murmuradas à distância. Sons abafados e ininteligíveis.
Aquele rosto aproximou-se ainda mais do seu, flutuando no ar, aparecendo e desaparecendo, à medida em que ele se esforçava para manter os olhos abertos e esperançosos por algo familiar.
Dor. Uma dor descomunal se fazia sentir. Nas costelas, no estômago, pés, cotovelos, por quase todo seu corpo franzino. Mas a dor excruciante que atingia a cabeça, desde as têmporas até a nuca, essa lhe atordoava.
- Senhor Deus, nosso soberano pai, deixe-me partir. Sinto que me é chegada a hora. Quero ir em paz. Não quero mais este mundo. Rebeca estou a caminho. Espere-me! Gritou a plenos pulmões.
Uma mulher sussurrando e afagando-lhe de leve a testa disse-lhe:
- Rômulo, meu filho, tenha calma. Você há de melhorar!
- Rebeca?
- Não, sou eu Norma, sua mãe. Você se lembra de mim? Lembra-se do que aconteceu?
Indiferença. Nada lhe era íntimo. Ainda que a dor lhe consumisse por inteiro, até os ossos, Rômulo, pode ouvir aquela voz, que lhe dissera ser sua mãe, conversando com a enfermeira que o acudira, ao lado esquerdo da cama.
- Dona Norma, ele de nada se lembra. Até ontem vegetava. Durante à noite, despertou completamente perdido, querendo remover os equipamentos conectados a ele. Sua força foi desproporcional ao seu porte raquítico. Foi necessário sedá-lo. Depois, às 5:00 acordou e desde então, dorme e acorda, repetidamente, com pequenos intervalos. Tem um grande inchaço na cabeça. Apesar disso, o médico acredita que há boas chances de sobrevivência.
Dona Norma, fitou-o ternamente, e novamente, acariciou-lhe o rosto.
- Estou aqui, filho. Seja forte! Ainda temos muito a viver juntos.
Prostrada ao seu lado, Dona Norma precisava exorcizar seus próprios demônios que a perseguiam há cinco anos, desde que Rômulo sofrera um gravíssimo acidente de motocicleta, ao conduzi-la, imprudentemente, acima da velocidade permitida e sem o uso adequado do capacete. A contar daquele fatídico dia, esse “despertar” de Rômulo era o primeiro sinal de alguma melhora genuína em todo esse tempo. Permanecera até a véspera, apenas reagindo aos estímulos mecânicos dos aparelhos.
- Quero partir, mãe! Quero deixar para trás esse mar de sofrimento. Nem ao menos sei quem sou, ou quem fui. Quero descansar ao lado de minha saudosa Rebeca.
Norma não podia demonstrar fraqueza, muito menos admitir que seu filho de 38 anos falasse daquela maneira, repleto de desesperança. Sentia nele a amargura de quem perdera a esposa, precocemente, no parto da primogênita. Rebeca deixara-o, com a árdua tarefa de criar a pequenina Isis, distante da presença materna.
Rômulo entregou-se à bebida, mergulhou nos porões escuros de sua dor e chafurdou na lama de seu desespero. Sua motocicleta veloz passou a ser sua fiel companheira.
Errante. Errado. Distante. Desesperado.
As incontáveis nódoas arroxeadas espalhadas pelo rosto oblíquo de Rômulo, imprimiam-lhe um aspecto funesto e contrastavam com sua pele alva e sua beleza peculiar de outrora.
A perda prematura da esposa e o compromisso de criar sozinho a filha recém-nascida desencadearam sua instabilidade emocional e sua entrega à uma vida desregrada. Um passo rápido e mal dado. Esses fatores lhe causaram um estrago irreparável no corpo e, sobretudo, na alma. Aos poucos, Rômulo desistira de viver.
Repentina e inexplicavelmente, um cheiro intenso de rosas tomou conta do quarto. Dona Norma sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo. Estremeceu espantada!
Ergueu seus olhos em direção ao filho. Sombras pululavam pelas paredes. O sol, agora mais insistente, coloria o quarto.
Rômulo murmurou algo. Norma não conseguiu compreendê-lo. Apoiou suas mãos carinhosas sobre as dele. Apertou-as. Sentiu um ligeiro tremor, agora vindo de Rômulo, seguido de um espasmo e um profundo suspiro.
Silêncio. Silêncio sepulcral.
Norma, arrebatada pela dor, apenas desejou que seu filho, que não a reconhecera nos últimos instantes, fosse no céu, reconhecido e recebido por Deus, em sua luz e bondade infinitas.
Silêncio. Escuridão. Profundo silêncio. Nada mais que silêncio.