A Semântica da Festa
Contos | 2025 - AGOSTO - Ventos do tempo: Memórias e despedidas | Gilmair Ribeiro da SilvaPublicado em 08 de Junho de 2025 ás 12h 51min
A semântica da festa
A Escola Pública Comendador Mauro Gonçalves, situada na periferia da cidade, embora fosse considerada uma unidade de pequeno porte, refletia a realidade das demais instituições de ensino do Estado de São Paulo. Passava pelas mesmas transformações devastadoras, segundo aqueles que viam a escola como um espaço vocacionado para o debate público, a efervescência das ideias, a promoção célere da arte, da expressividade por meio da leitura e da formação de cidadãos críticos.
Naquele momento, a unidade vivia uma crise de identidade, abalada pelo avanço do conservadorismo que predominava entre a maior parte do corpo docente. Como é sabido, profissionais desse perfil não cultivavam o hábito da leitura e possuíam um vocabulário limitado — talvez restrito a mil palavras —, utilizado na explanação de aulas fundamentadas no senso comum. Os ideais desse grupo acabavam por representar uma parcela significativa de alunos e famílias, perfazendo cerca de sessenta por cento da comunidade e, consequentemente, da escola pública em questão.
Era um tempo em que estatísticas e especialistas apontavam para um crescimento vertiginoso do público religioso fundamentalista em todo o país, impulsionado principalmente pelo advento das igrejas neopentecostais.
Nas cidades do interior do Estado de São Paulo, especialmente nas mais conservadoras, parte dos professores, por conviverem diretamente com os alunos e suas famílias, ampliava seus conhecimentos e desenvolvia uma percepção mais aguçada. Alertavam que dois públicos religiosos conviviam harmonicamente na escola pública:
O primeiro provinha de famílias tradicionalmente religiosas. Eram rígidos nos costumes e nas ações, mantinham uma linha de conduta baseada no respeito ao próximo e na boa convivência com os professores. Contudo, eram radicais em questões relacionadas aos costumes e à fé, sendo intolerantes a qualquer fala ou abordagem que interpretassem como contrária às suas crenças e dogmas.
Essas famílias, muitas sem educação formal, tornaram-se radicais ao aderirem à extrema-direita, acreditando que os políticos dessa ala defendiam as tradições, os costumes, a unidade familiar tradicional e a pátria.
Havia, porém, outra parcela numerosa, também de extrema-direita, mas com trajetória inversa. Esses aderiram à religião porque ela se tornara uma das bandeiras desse grupo político, que havia se apropriado de parte dos templos, dos símbolos nacionais, do hino e das cores patrióticas, com o objetivo de crescimento e dominação. Não eram reconhecidos pela fé nem pelos bons costumes; ao contrário, cometiam toda sorte de proezas e maldades, mas eram ainda mais radicais na defesa dos costumes e vigilantes das falas e dos hábitos nas escolas
Por conta disso, chegou um tempo em que discutir política na escola tornou-se proibido — como se isso fosse possível, tendo em vista que o próprio processo educativo já é uma ação política.
— "Na minha escola não se discute política nem religião" — dizia de maneira arrogante a diretora, dona Manoela, que, mesmo sem descer do pedestal e habitar entre os mortais, contava com a concordância de mais da metade dos docentes em atividade.
A professora de arte questionava em seu diário: "Claro, não se pode discutir política num ambiente em que, por incapacidade de apresentar argumentos e combater ideias, acaba-se atacando pessoas."
Assim, o ambiente foi se moldando à base dos costumes: das roupas que se usavam, da vigilância dos namoricos e da defesa das teses religiosas.
A Festa Junina, por exemplo, já não acontecia havia três anos. A gestão da escola justificava:
"Havia muitos alunos de origem religiosa praticante, e, por adotarem uma conduta mais rígida em sua fé, crença e religiosidade, é de supor que, por orientação e, em muitos casos, determinação familiar, não participariam de uma Festa Junina, pois a consideram idolatria, conforme suas interpretações bíblicas."
O conselho escolar, formado majoritariamente por docentes conservadores, opinou pela não realização da festividade por mais um ano, diante da justificativa de que os alunos, na maioria, provavelmente faltariam às aulas nesse dia por considerarem a celebração uma forma de idolatria.
No final de maio, quando a discussão voltou à pauta, a diretora, apresentando uma retórica embasada nos pressupostos da manipulação e do assedio, apresentou uma proposta para resolver o impasse — e de maneira bastante simples:
"O problema todo é uma questão semântica! Basta mudar o nome do evento. Em vez de ‘Festa Junina’, chamaremos de agora em diante de ‘Festa da Colheita’."
“Essa solução linguística, que inclusive remetia ao Velho Testamento, poderia agradar a todos e evitar ausências consideráveis”.
A professora de Língua Portuguesa, incomodada, ajeitou-se na cadeira e, analisando a base pedagógica e a construção ética da proposta imposta, preferiu abster-se da argumentação.
Não abriu a boca, pois sabia ser voto vencido, mas interpretou com seus botões a fala da diretora:
"Estamos enganando os religiosos praticantes por serem ingênuos ou não possuírem educação formal e, no fim, realizaremos a festa com a estrutura esperada."
Venceu o pragmatismo.
A festa foi um sucesso.