A sábia Eve

Contos | Romeu Donatti
Publicado em 12 de Setembro de 2022 ás 20h 03min

Adam andava sorumbático. Já não suportava tanta beleza e perfeição. Estava enfadado! Havia percorrido todo o Jardim das Maravilhas. Já havia conhecido todos os espécimes animais e vegetais. Nada mais lhe era novidade. Rios sinuosos, lagos cristalinos, flores perfumadas, pássaros exóticos e coloridos, paisagens deslumbrantes, ar puro e fresco, frutos ácidos, doces, cítricos, de cores e sabores inimagináveis, fauna e flora ricas e abundantes. Entretanto, nada disso lhe interessava mais. O tédio lhe tomava conta. Nem mesmo seus esportes favoritos, a corrida de cipós e a maratona de tartarugas lhe davam o mesmo prazer de outrora. Faltava-lhe algo, que nem ele mesmo sabia do que se tratava.

Certo dia, decidiu desafiar-se a alcançar, pela segunda vez, a mais alta montanha da ilha, a Montanha Himadamesmalaia. Levantou-se cedo, antes mesmo da aurora e, vestiu-se com sua melhor tanga (feita por ele mesmo, de pele de girafa), juntou alguns mantimentos (frutas e raízes) e pôs-se ao encalço de sua próxima aventura.

Pela posição do sol era quase meio dia quando atingiu os pés da Himadamesmalaia. “Imponente, altiva e enigmática”, foi assim que Adam a descreveu para si mesmo, ao fitá-la novamente. Já se preparava para iniciar a escalada, quando percebeu que à sua esquerda (cerca de 100 metros dali), uma nesga de fumaça pincelava o céu no horizonte. Intrigado, decidiu empenhar uma oportuna investigação. Jamais vira algo semelhante por aquelas redondezas!

Rapidamente aproximou-se. Depois, sorrateiramente e com passos mais compassados e silenciosos, chegou-se de vez. Era uma fogueira. Ainda havia brasas incandescentes e um pedaço grosso de madeira queimava (eis a razão da fumaça) e sobre ela quatro estacas cruzadas formavam uma espécie de estrado onde restos de carne (talvez de um coelho ou uma ave) eram assados.

Que inusitado! Adam jamais pensara na possibilidade de haver outras pessoas naquele lugar. Julgava-se até então, o único habitante daquele paraíso singular. A ideia da presença de outro ser humano como ele, lhe trouxera sentimentos ambíguos: já não era o único na ilha e (pior que isso!) aquelas paradisíacas bandas não eram exclusividades suas. Além disso, perguntava-se se seria uma figura amistosa ou inimiga. Enfim, tantas indagações conseguiram devolver-lhe o entusiasmo e o interesse antes perdidos no marasmo de uma vida edênica e solitária.

A curiosidade lhe inflamava! Quem seria? Como seria?

Adam continuou sua busca e um pouco mais adiante, debaixo de uma soberba e frondosa árvore percebeu indícios da estadia de alguém por lá. Viu utensílios que pareciam para recolher água e fazer comida, muito limpos e arrumados, uma vassoura de galhos, uma cama de madeira e couro de bisonte e folhas de bananeira, e roupas, também de couro, de girafa, zebra e leopardo, mas com cortes diferentes dos seus. “Que espécie usará isso?” – indagou-se cada vez mais arrebatado pelo estranhamento.

        Ouviu folhas sendo pisoteadas por passos tranquilos, voltou-se, e, boquiaberto, viu saindo do riacho que serpenteava o pé da montanha, a mais fantástica das criaturas: uma linda e garbosa mulher (assim deduzira, jamais havia visto uma!) e aquela sibipiruna provavelmente era sua casa.

        Ela também o viu e imediatamente apanhou seu tacape. Não seria atacada de surpresa por aquele intruso fedorento e malvestido.

        - Quem é você? – perguntou-lhe, sem rapapés.

        - Meu nome é Adam. Venho lá da ponta sul da ilha. Vim explorar a montanha. Não pensei que havia outros seres como eu por aqui.

        Foi interrompido bruscamente.

        - Igual a você? Eu? Está louco! Nem aqui, nem na Pequepéia. Saia de meus domínios. Essa terra me pertence.

        - Vi lá de longe essa fumaça e fiquei intrigado. Quis descobrir do que se tratava.

        - Pois bem, agora que já viu, dê o fora. Está na hora do meu almoço e não gosto de carne bem passada. Por gentileza, retire-se.

        - Não podemos conversar? Eu queria companhia. Estava cansado da pasmaceira cotidiana do outro extremo da ilha. Você não se sente só?

        - Claro que não. Sou bem resolvida! – disse ela, sem meias palavras.

Eve era assim mesma, crescera aos pés da Himadamesmalaia e sempre se orgulhara de caçar, pescar, cuidar de sua árvore-lar, das roupas, absolutamente sozinha, sem qualquer tipo de ajuda.

Adam prosseguiu na sua argumentação.

- E se eu me mudasse para cá? Poderíamos fazer companhia um ao outro. Nos divertiríamos nesse paraíso, eu poderia sair para caçar, às vezes, e você ficaria por aqui, cuidando de nossa árvore, fazendo minha comidinha predileta, cuidando de nossos futuros filhos. E de vez em quando eu deixaria você praticar a corrida dos cipós, sem qualquer problema...

Eve interceptou-o erguendo a sua mão direita, fazendo-o calar-se. Atônita, não acreditava no que acabara de ouvir. Ou teria sido um devaneio? Talvez o sol quase a pino a tivesse afetado e ela estaria tendo alucinações? Estaria delirando? Esfregou freneticamente os olhos para acordar daquele sonho. Em vão! Deu-se conta de que era apenas um pesadelo real. Em carne, osso, empáfia e tanga ridícula de couro de girafa.

- Dê meia volta e nunca mais apareça por aqui, ou serei obrigada a usar, além do meu poderoso tacape, minhas próprias unhas nessa sua tremenda cara-de-pau. Vá plantar batatas na sua parte da ilha!

Adam, espantado, mas orgulhoso, fez uma nova tentativa.

- E se não existissem nós, os homens, a por regras para manter a ordem nessa terra, dar proteção e defender nossos interesses, o que seria de vocês, pobres e indefesas mulheres?

Sem pestanejar, sagaz como uma leoa e certeira como uma flecha, Eve retrucou:

- Nesse caso, nós mulheres destemidas, independentes, inteligentes e gentis teríamos que domesticar outro animal.

Os grilos, comuns naquela parte da ilha, puderam ser ouvidos a léguas dali.

Comentários

Olá! Utilizamos cookies para oferecer melhor experiência, melhorar o desempenho, analisar como você interage em nosso site e personalizar conteúdo. Ao utilizar este site, você concorda com o uso de cookies.