Tudo calmo. Tudo da forma que queria. Na vitrola o disco do Roupa Nova, os livros na estante e seu gatinho indiano deitado sossegadamente na escrivaninha entre a Bíblia e o livro de Lord Byron. Só faltava abrir a janela, deixar a cortina fechada, arrumar a arma e atirar. Quem seria a vítima? Não sabe e também não importa. Apenas um transeunte que estaria no lugar errado e na hora errada. Se tem família? Não importa, todos os transeuntes que circulam a essa hora e nas outras horas têm família e todos vieram de uma família. O mundo não importa de onde você veio e para onde você vai. Colocou o cano da arma e com a mira telescópica procurou uma vítima, tentando encontrar um critério para justificar sua escolha. Qual critério utilizar? Cor da camisa? Cor da calça? Com chapéu, sem chapéu, hoje quase não se vê alguém com chapéu na rua. A forma de andar? Um cigarro na mão? Não importa. Ninguém se importa como você anda na rua, ninguém se importa como você caminha.  Pessoas caminhando penosamente com tristeza, ou com alegria? Não importa. O mundo não se importa se você está triste ou alegre, simplesmente nada é importante. O gato está num sono profundo sobre o livro de Byron. A poesia de Byron é uma almofada divina. Precisa atirar sem acordar o gato. Isso importa. Isso tem importância. Um transeunte de camisa azul, gravata vermelha, calça preta e sapatos vermelhos surge devagar subindo a pequena ladeira. Esse é o critério. Um tiro certeiro no coração. Um corpo caído no chão. O gato deu uma estremecida e retornou ao sono.