A MOCHILA AMERICANA

Contos | Antologia Romeu Donatti e convidados - História de Escola | Valcastilho
Publicado em 25 de Fevereiro de 2024 ás 11h 56min

Entre a casa grande e a senzala, atual colônia, sempre houve a casa do capataz, e na casa do capataz vivia aquelas crianças que frequentavam a cozinha da casa grande, e as festas de aniversários da colônia. Eu e meus irmãos, crescemos na casa do capataz, pobre demais para frequentar a sala do piano da casa grande, ricos e brancos de mais para sermos aprisionados na colônia.

                Provavelmente, minha geração foi uma das últimas a estudar nas escolas rurais do interior do Paraná, quando então, se reuniam as crianças da capatazia com as crianças da colônia, e todas partiam para a Escola Rural Mendes Sá, fugindo dos nelores bravos, se arranhando nos arames farpados, pulando por cima de cascavéis, pisando em formigueiros.

                Quando era temporada de amoras, chegávamos de volta em casa, com as mãos e a boca roxa do suco da fruta, considerada tão doce, por nós, ainda descobrindo as cores e sabores da vida.

                A caminhada de quatro quilômetros de ida e volta, era mágica, esquecíamos nossa posição social naquele rincão, na estrada não tinha casa grande, capatazia e muito menos colônia, éramos todos iguais correndo pelos pastos e plantações até chegar na escola.

                Mas, num final de semana, o dono da casa grande estava na fazenda, e viu, eu e meus irmãos assistindo desenhos animados da Disney. Talvez, surpreso por ver os filhos do capataz, tão compenetrados, assistindo televisão, disse:

                _ Vocês gostam da Disney?

                Desviamos o olhar da tela, e, aí, se não lhes déssemos a atenção. A educação e a subserviência são condições maestrinas do se pertencer à capatazia. Como a irmã mais velha, disse que sim, que gostávamos, e ele prosseguiu:

                _ Em janeiro, levarei meus filhos para visitar a Disney, e porque vocês gostam dos personagens, trarei presentes de lá para vocês.

                Meus irmãos mais novos ficaram eufóricos.

                Eu, logo, pensei: - Meu Deus, o que vem dessa vez!

                As crianças com quem convivíamos, tinham uma situação econômica muito inferiores à nossa, que se diga, não era das melhores. Não, raramente, gostaríamos de poder levar nossos brinquedos para brincar com eles na colônia, mas, a colônia era proíba para nós, e a capatazia ligada a casa grande, era proibido para eles. Assim, vivíamos em dois mundos, num espeço de alguns alqueires de terras, e milhas de distância do reconhecimento do que é igualdade social e de classe. 

                Por isso, gostava tanto do caminhar até a escola, naquele espaço a igualdade social e a camaradagens eram reciprocas, sem os adultos por perto.

                O final do ano passou rápido, e o ano letivo começou novamente. E, pelo visto, o decimo-terceiro das famílias da colônia, não tinha sobrado, nem mesmo para comprar as bolsas com a logomarca “positivo”, pois Amalia usava a mesma, dos dois últimos dois anos; Iara trazia seus cadernos numa sacola de uma loja de grife, trazida pela tia, de São Paulo, quando veio passar as férias na casa dos parentes na cidadezinha; Tiago e João, traziam seus cadernos, dentro de embalagens de plástico de cinco quilos, de arroz marca “Tio João”, e não se abalavam com nada, quando alguém tentavam caçoar do fato, respondiam sorrindo:

                _Bah, não molhando, nem embarreando os cadernos, tá bom por demais!

                E, caiam na risada.

                 Já eu e minha irmã, tínhamos mochilas jeans, toda estilosa com bottons do grupo musical menudo, moda na época entre os adolescentes, lá pelos idos da metade da década de oitenta. A maioria das vezes, ficava incomodada por não ter uma bolsa “positivo”, que mal tinha de ter uma? Pensava eu. Assim, a irmandade seria maior, e não seriam deixadas de lado, até que a mochila sujasse, rasgasse ou coisa parecida. Minha sorte, que em poucas semanas de uso, a mochila jeans nova, no estradão, a caminho da escola, se tornava uma sandália de franciscano, só as tiras, e a convivência social retornava ao normal.

                Nunca quis ser diferente, mas igual, de forma que conseguisse me perder na multidão, ser eu, ser você, não importa, pertencer, sermos nós ou, simplesmente, não ser ninguém.

                Mês de março chegou, lá veio do dono da fazenda a cumprir sua promessa, de trazer souvenir da Disney. Meu pai e mais um pião, foram buscar o homem no aeroporto de Foz do Iguaçu–PR, ainda de madrugada, pois o patrão pretendia aproveitar o dia, e visitar a propriedade a cavalo.

                Quando era umas oito horas da manhã, os três homens já estavam de volta, meu pai, o pião e o patrão, que desceu do carro e pediu que meu pai tirasse do porta-malas, as sacolas de presentes.

                Para meus irmãos menores, trouxe jogos e bonecos do Mickey, do Pato Donald e outros, para mim e para minha irmã, grandes mochilas americanas, coloridas, e com estampa da Disney. Lembro que a minha era laranja com alças brancas e a da minha irmã rosa, também, com alças brancas.

                Ao abrir a sacola com o presente, meu mundo caiu, na hora pensei que se tivéssemos que usar aquelas mochilas, para ir à escola, nunca mais, teríamos de volta a amizade das crianças da colônia, agora, diante uma mochila importada da Disney, não teria volta, seria uma humilhação muito grande, para nós duas, é claro.

                No outro dia, rezando para minha mãe não lembrar das mochilas, mas, ela lembrou, e não haveria outra forma, pois, o que diria ela e meu pai, quando o patrão perguntasse se havíamos gostado das ditas mochilas!

                Muito a contragosto, tiramos o material das mochilas jeans, as quais, já se encontravam socialmente aceitas pelo grupo, e colocamos nas mochilas novas.  

                Ainda posso sentir o olhar de escárnio de Amália, enquanto, nos dizia:

                _ Uh, metidas filhinhas de papai, para quem vê pensa que são ricas, mas estuda no mato que nem nóis!

                Naquele dia, se deram os braços e andavam em nossa frente, e não interagiram com a gente, durante a ida e a volta da escola. Eu, tinha uma personalidade mais forte, se eles não queriam conversar comigo, não queria conversar com eles. Mas, minha irmã, ela era mais gregária e era mais dependente de um convívio social mais próximo, e a todo momento, buscava retomar as brincadeiras, de forma em vão, as crianças não demonstravam ter interesse em nos aceitar de novo no grupo.

                Por três dias, as coisas não melhoraram, as benditas mochilas americanas, acabaram com o nosso terreno neutro – a estrada. Mas, minha irmã estava disposta a recuperar o seu espaço no grupo. Na volta da escola, quando menos se esperava, ela tirou a mochila das costas e jogou por cima da cerca, caindo cima de uma moita de capim-colonião. Enquanto, jogava dizia, em meio a gritos e gargalhas, que não aguentava mais carregar aquele monstrengo americano nas costas.

                Todos, riram muito, aproveitei a deixa e joguei a minha também, os cadernos, lápis, borrachas, livros se esparramaram no chão entre as moitas de capim. Aproveitando a brincadeira, todos também jogaram seus materiais por cima da cerca, e foi uma festa. Menos João, que segundo ele, não iria jogar o “tio João”, por cima da cerca, porque que ele respeitava os mais velhos. Pronto, era o que faltava, riamos de cair no chão, de toda a situação.

                A partir desse dia, nossas mochilas americanas, se tornaram uma espécie de Judas no Sábado de Aleluia, tirávamos das costas e puxávamos pelas alças de forma que se arrastasse pelo chão, fazia questão de enroscá-las no arame farpado, sentávamo-nos em cima para comer o longe, no caminho de volta.

                Não demorou muito, e a dureza do solo vermelho do Paraná, acabou com as mochilas, de forma que não dava mais para serem usadas. Nossa mãe, claro, ficou muito brava, disse que não sabíamos cuidar de um presente caro, que muitas crianças, inclusive, as da colônia adoraria ter uma mochila daquela. Mal sabia ela, que todos nós, como verdadeiros revolucionários anti-imperialistas, havíamos acabo com as mochilas ianques.

                Como castigo, nossa mãe comprou bolsas “positivo”, exatamente, iguais aos que as meninas da colônia tinham. O primeiro dia que fomos com as bolsas positivo, foi nossa redenção social. Finalmente, éramos iguais.

 

 

 

 

 

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