A mesma história de sempre

Contos | Neiva Guarienti Pagno
Publicado em 06 de Março de 2023 ás 20h 57min

Todo mundo tem um tio aventureiro. Daqueles que aprontam muito. Aquele que mata boi lá no pasto, que vai pescar e inventa de pegar uma sucuri pela unha, que caça tatu, capivara, porco do mato, que vai caçar à noite e enfrenta assombração, que já é adulto, mas parece uma criança arteira e vive dando dor de cabeça para a família.

Pois é... Eu tenho um tio assim, beeem assim!

Este é um causo que ele conta sempre. Já contou tantas vezes que até acho que aconteceu mesmo. No começo eu não acreditava. Mas já passou muito tempo do acontecido e ele ainda narra a mesma coisa, detalhe por detalhe, a mesma história de sempre. Penso que não é enganação e que o fato se sucedeu realmente.

Era um dia de sol. Não um solzinho fraco, mas um sol amarelo ardente, da cor do ouro. Era de tarde. Ainda período da chuva, mas devagarzinho se aproximava a seca. Ainda tinha plantação verde, de milho e de algodão.

Meu tio resolveu sair para pescar. Falou para minha tia:

“Não se preocupe comigo. Vou pescar e só volto amanhã cedo. Vou posar lá no mato de sempre. Vou buscar o alimento.”

Aí ele seguiu. Sozinho não.

“Nunca estou sozinho. Deus vai comigo”, como ele sempre dizia.

E foi.

Chegando no local, o mesmo de sempre, largou a velha moto amarela já caindo aos pedaços. Pegou sua “boroca” e entrou no mato que cercava o rio de sempre.

Pegou o facão de sempre e foi raleando a mata para poder se ajeitar. O sol ardente. Meu tio até suava de tanto calor.

“Vou arrumar um lugar pra dormir. Depois vou no rio pegar o alimento de sempre”, falou consigo.

Mas de repente, o inesperado. No ralo da mata de sempre, alguma coisa espionava o tio aventureiro.

E como nunca antes havia acontecido, não era nada como o que acontecia sempre.

“Ela estava lá, de olhos grandes amarelados, à espreita, quieta, me olhando... Nenhuma folha se mexia...Nem ela...Nem eu...O que fazer? Olhei as árvores, mas eram finas demais. Olhei o rio, mas ele estava longe. Correr? Acho que não dá. Gritei alto sai bicho! Ela nem se mexeu. Gritei de novo sai bicho! Quando pisquei o olho, ela ficou a um passo de mim: ofegante, nervosa, com os olhos grandes amarelados a me fitar. Ela era enorme, linda, apavorante. Com a pata dianteira erguida, pronta pra me atacar. Uma onça. Gritei bem alto sai bicho e com os braços no ar, segurando apenas o facão de sempre. Mas de repente, eu a vi se virar pro lado e, num pulo suave entre as árvores da mata, afastou-se de mim e pulou pra dentro do rio”.

Agora o suor era mais forte, não por causa do sol. O susto. E que susto! Que medo! Que pânico! E o alimento de sempre ficou esquecido para trás.

E meu tio refez o caminho de sempre, de volta para casa, ainda pálido, assustado, incrédulo. Mas agora algo estava diferente dentro dele.

E os fatos de sempre foram tomados pelo inesperado, pelo inusitado, pelo imprevisível. Talvez uma nova chance de viver? Talvez uma nova maneira de mudar sua história? Talvez a vida, a partir daquele acontecimento, nunca mais seria a mesma.

E os dias se passavam e meu tio aventureiro contava essa história para os familiares, para os vizinhos, para os amigos da canastra, para o vendedor de queijos, para os parentes lá do sul... A mesma história de sempre.

Aí passei a acreditar que essa história não era engambelação. Era um caso real vivido por meu tio aventureiro.

Comentários

História bem contada parece real!

Enoque Gabriel | 07/03/2023 ás 08:16 Responder Comentários
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