Em 1985, enquanto a Argentina acertava as contas com alguns algozes da sua ditadura, eu ingressava na quinta série do ginásio, denominação dada aos últimos quatro anos do ensino fundamental, na época, enquanto, no Brasil, a preocupação era acomodar os exilados políticos que voltavam aos montes ao país, e fazer os milicos recuarem de volta aos quartéis, como se nada tivesse acontecido, tudo sob a proteção da covarde lei da anistia.
O Ditador Figueiredo, ainda mandava no país, o movimento pelas diretas já, ainda não estava nas ruas, então, de uma forma muito sútil, mas, eficiente conheci o que não é democracia.
Era início do ano letivo, e acabávamos de receber a Cartilha de Comunicação e Expressão, naquele ano, a capa tinha sido impressa na cor branca. Assim, foi recomendado aos nossos pais, que providenciasse uma capa de proteção, pois no final do ano, teríamos que entregar a cartilha, as quais seriam entregues para as novas turmas da quinta séries, enquanto, nós receberíamos a cartilha da sexta série.
E assim foi feito, minha mãe comprou um plástico colorido e encapamos aquela maravilha do conhecimento. A cartilha era composta de pequenos fragmentos de livros da literatura clássica brasileira, mas, também, de letras de músicas de compositores como Chico Buarque, Geraldo Vandré e outros. Textos esses, os quais deveríamos ler e a partir deles resolver uma série de exercícios de escrita e interpretação.
No entanto, entre todos os textos que se encontravam naquela cartilha, um irritou a censura do regime, o texto contava a estória de um menino faminto, mas, muito inteligente que teria utilizado da inteligência e sagacidade, para enganar uma velha avarenta que lhe tinha negado comida. O menino usou da ganância da velha, dizendo que sabia fazer uma deliciosa sopa de pedras. A velha, interessadíssima, em aprender a receita, lhe emprestou uma panela, e o menino deu início a feitura da sopa, durante o processo o menino vai dizendo a velha, que a sopa era deliciosa, mas, que ficaria melhor com temperos, legumes e até mesmo, carne de galinha. Obcecada pelo pensamento de quanto poderia economizar, se aprendesse fazer sopa de pedra, a velha não percebeu que o menino lhe havia pregado uma peça. Esse simples texto, sobre avareza, incomodou o general e sua elite do atraso.
No final da última aula, a diretora e a coordenadora entraram na sala e pediram que colocássemos a Cartilha de Comunicação e Expressão em cima da carteira, todos, sem entender nada, cumprimos a ordem, então, ela e a coordenadora passaram recolhendo fila, por fila, um, por um, sem nos dizer uma palavra sequer.
O silêncio do momento, ecoava nos corredores, o professor se via extremamente constrangido, não ousavam nos olhar nos olhos, todos assustados.
No outro dia, na primeira aula, a diretora e a coordenadora apareceram com as cartilhas e nos devolveram, sem a página que continha a estória da sopa de pedras. Me lembro que me sentava na primeira fila, de frente com a mesa do professor. Assim, que a diretora e a coordenadora fecharam a porta, o professor levantou e pegou a minha cartilha, ao abri-la, de imediato, ele viu que faltava uma página, a página da “sopa de pedras”.
Vi seus olhos marejarem e sair correndo. Quando voltou, tinha nas mãos a Cartilha de Comunicação e Expressão distribuída para os Professores, a qual, ainda, tinha todas as folhas, então, com a voz embargada, pediu que abríssemos os cadernos e copiássemos o texto que ele ia escrever no quadro.
Durante a escrita, todos nós percebíamos que ele escrevia e chorava, chorava e escrevia com força no quadro negro, o giz por diversas vezes quebrou, e ele pegava outro. Quando terminou de escrever, disse: copiem e colem na página que está faltando na cartilha de vocês, e nunca, nunca permitam que digam a vocês o que podem ou não ler.
Naquele dia, aprendi o que é repressão, mas, também, entendi o que é resistência, caráter, valor e pertencimento.
Eu vi que um regime fechado, uma ditadura, fere, mesmo quando está agonizando. Não se pode cochilar, o guarda da esquina está na espreita, feito um carcará maligno, qualquer descuido, e eles voltam a rasgar cartilha de crianças, matar quem não concorda com eles, e depois pedir anistia.
Anistia nunca mais.
Comentários
Maravilhado com seu texto. Parabéns!
Romeu Donatti | 15/03/2024 ás 11:21 Responder ComentáriosObrigada
Valcastilho | 28/03/2024 ás 14:42Parabéns, poetisa Val Castilho, por tão expressivo texto! Por vezes temos vontade de expressar nosso sentimento de revolta que jaz sufocado, mas as palavras contidas em suas palavras nos confortam. Parabéns!
ENOQUE GABRIEL | 15/03/2024 ás 11:55 Responder ComentáriosDesculpe a falha! O correto é “as palavras contidas em sua crônica”
ENOQUE GABRIEL | 15/03/2024 ás 12:08A escrita,também, é resistência!
Valcastilho | 28/03/2024 ás 14:46