A cidade está fechada. Ninguém entra, ninguém sai.
Crônicas | Carlos Roberto RibeiroPublicado em 26 de Abril de 2025 ás 17h 16min
Em 1964, eu era apenas uma criança, mas há silêncios que ensurdecem e imagens que nunca nos abandonam.
Lembro como se fosse agora: meu pai chegou em casa com o rosto fechado e disse, com voz firme, mas contida, para minha mãe:
— “A cidade está fechada. Ninguém entra, ninguém sai.”
Na minha mente infantil, imaginei uma imensa porta de madeira atravessada no meio da rua, trancada com uma chave gigantesca, impedindo a passagem de carros, de gente, de vida.
Mais tarde, bem mais tarde, descobri que aquela frase — aparentemente banal — era o anúncio de uma tragédia nacional. O Brasil havia sido golpeado. A democracia, sequestrada. Começava o ciclo sombrio da ditadura militar.
Aquela “porta” imaginária era, na verdade, a censura. O medo. A repressão. O exílio. A tortura. O desaparecimento de corpos e a tentativa sistemática de apagar vozes.
E aqui estou, décadas depois, ainda com essa cena viva na memória. Não porque eu a deseje, mas porque ela insiste em me lembrar do que acontece quando o povo é silenciado.
Hoje, quando ouço ecos de autoritarismo se espalharem novamente — disfarçados de ordem, segurança ou patriotismo — lembro do dia em que meu pai entrou pela porta e disse que a cidade estava fechada. E lembro que foi ali que tudo começou.
Não foi só a cidade que se trancou. Foi o país. Foram os direitos. Foi a liberdade.
E é por isso que não esqueço. Porque esquecer é deixar que fechem, de novo, todas as portas.