O silêncio de Deus e a ruína moral na literatura de Ricardo Guilherme Dicke
Dolores FlorPublicado em 11 de Maio de 2025 ás 19h 03min

Dissertação analisa o romance Deus de Caim como um espelho da crise ética moderna e da dissolução de valores no sertão simbólico de Dicke
Qual o lugar da moralidade em tempos de colapso dos valores tradicionais? É possível representar literariamente um mundo onde até Deus parece silenciado? Essas são algumas das provocações que orientam a pesquisa Um Deus Silencioso: fratricídio, modernidade e moralidade em Deus de Caim, dissertação de mestrado que propõe uma leitura crítica da obra do escritor mato-grossense Ricardo Guilherme Dicke à luz de questões éticas, filosóficas e estéticas.
Partindo da emblemática obra Deus de Caim, vencedora do Prêmio Walmap em 1967, a pesquisa investiga como Dicke reescreve, com profunda carga simbólica, o mito bíblico de Caim e Abel. No lugar do deserto bíblico, entra a cidade imaginária de Pasmoso, um sertão mítico em que os irmãos Jônatas e Lázaro, figuras centrais do romance, protagonizam um drama marcado pelo ódio, pela paixão e pela luta pelo poder. O fratricídio, mais do que um ato individual, é visto como alegoria de um mundo em que os vínculos humanos se romperam e os valores morais se desintegram.
A escolha do título da dissertação reflete esse universo narrativo. Um Deus Silencioso evoca a ausência da voz divina no romance e a sensação de vazio ético diante de uma realidade onde o sagrado já não opera como regulador das ações humanas. O silêncio de Deus simboliza, nesse sentido, o abismo moral da modernidade — tema que a dissertação aborda com base em pensadores como Zygmunt Bauman, Walter Benjamin e Theodor Adorno.
Ao colocar a modernidade no centro do debate, a pesquisa mostra como Dicke transcende os limites do regionalismo. Apesar de ambientado em um sertão aparentemente tradicional, Deus de Caim reflete tensões universais: o declínio das estruturas familiares, a crise de fé, a fragmentação da identidade, o peso da culpa e a impossibilidade de redenção. Nas palavras da pesquisadora, trata-se de uma “ética do abismo”, onde a literatura não oferece respostas, mas expõe, com linguagem sofisticada e forma inovadora, a complexidade da experiência humana.
Com estilo que combina lirismo e violência, narradores instáveis e personagens em desintegração, Ricardo Guilherme Dicke é redescoberto, na dissertação, como um dos autores mais potentes e inquietantes da literatura brasileira. Deus de Caim ressurge, assim, como obra fundamental para pensar os dilemas éticos do nosso tempo — e como uma narrativa onde até Deus, silenciado, parece ceder à sombra dos homens.
Fonte: Dolores Flor
Comentários
Esse brilhante texto, mui bem elaborado, nos leva a reflexões diversas. Reflexões estas que, quer queira ou não, irá buscar recursos nas plataformas místicas, monásticas e nos induz a questões eclesiásticas. Nessa ótica, Deus não está ausente, sequer silenciado, tão pouco disposto a ceder à sombra da vontade humana. Deus concedeu o livre arbítrio, portanto não é fratricida, assassino, suicida ou outro adjetivo de natureza vil. Não! Ele concedeu liberdade ao ser humano para que cada um de nós exerça o seu papel com respeito e dignidade. O ser humano tem que ter domínio sobre si, sobre sua vontade e deixar que a razão prevaleça acima dos sentimentos. Deus disse a Caim" "O pecado jaz à porta. Cumpre a ti dominá-lo"
Lorde Égamo | 11/05/2025 ás 19:57 Responder Comentários