O PL 1904/2024 E O SUSTO DA IGNORÂNCIA DE NOSSA PRÓPRIA CONDIÇÃO PERSONALÍSTICA.

Valéria Castilho
Publicado em 30 de Junho de 2024 ás 17h 22min

Um dos temas mais comentados do mês de junho e que ganhou as ruas na segunda quinzena de junho de 2024, foi o Projeto de Lei 1904/2024 do Deputado Federal extremista Sóstenes da Silva Cavalcante, do Partido Liberal do Rio de Janeiro.

O núcleo do Projeto de Lei, se aprovado, consiste na penalização de mulheres que praticarem aborto legalizado, após 22 semanas de gestação, com uma pena que poderá ser maior do que a pena aplicada para a prática do crime de estupro.  

Cabe salientar que o aborto no Brasil está legalizado desde 1940, para os seguintes casos: gravidez decorrente de estupro; risco à vida da mulher e, recentemente, através da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 54/2004, os casos de anencefalia fetal.

 Sendo que o Código Penal não estabeleceu um prazo gestacional limite para que o aborto seja praticado, diga-se, taxativamente, nestes casos especificados. No entanto, nos últimos anos, o Ministério da Saúde passou a recomendar para que não se faça o aborto em gestação que tenha ultrapassado as 22 semanas de gestação, sob a justificativa de que a partir das 23 semana, inicia-se o processo de um parto prematuro onde não caberia o amparo legal que prevê a eliminação da vida intrauterina por meio da destruição do produto da concepção nos casos de violência sexual, ao arrepio do sofrimento da mulher violentada.

Tendo, inclusive, o Conselho Federal de Medicina editado a Resolução n.º 2.378/2024, impondo aos médicos que não efetuem o aborto, mesmo estando dentro dos casos autorizados pelo Código Penal, após as 22 semanas.

No entanto, em maio de 2024, o Supremo Tribunal Federal por meio de uma liminar do Ministro Alexandre de Morais, suspendeu a Resolução n.º 2.378/2024 do CFM, sob a fundamentação, que a resolução é inconstitucional por existir “… indícios de abuso do poder regulamentar por parte do Conselho Federal de Medicina ao expedir a Resolução 2.378/2024, por meio da qual fixou condicionante aparentemente ultra legem para a realização do procedimento de assistolia fetal na hipótese de aborto decorrente de gravidez resultante de estupro", (ADPF 1141 MC / DF).

Cabe observar que esse limite para a interrupção da gravidez legalizada, nada tem a ver com critérios científicos ou de saúde pública, mas, sim, advinda da influência de político da extrema-direita brasileira, utilizando a pauta evangélica puritana, claramente, contra a emancipação da mulher, para se manter viva no debate político, sobretudo, porque o Ministro que ousou a suspender a Resolução n.º 2.378/2024 do CFM, é o Alexandre Morais, arqui-inimigo da extrema-direita golpista brasileira.

Assim, como medida revanchista em face da suspensão da Resolução n.º 2.378/2024 do CFM e para bater de frente com o Supremo Tribunal Federal, em maio de 2024 trinta e quatro parlamentares, assinaram o PL1904/2024, entre eles as deputadas Simone Marquetto (MDB/SP), Cristiane Lopes (UNIÃO/RO), Renilce Nicodemos (MDB/PA), Franciane Bayer (REPUBLIC/RS), Carla Zambelli (PL/SP), Greyce Elias (AVANTE/MG), Bia Kicis (PL/DF), Dayany Bittencourt (UNIÃO/CE), Lêda Borges (PSDB/GO) e, Julia Zanatta (PL/SC).

No entanto, se enganam as mulheres que pensam que se trata de uma novidade, a utilização física do corpo feminino, bem como, de seus direitos como meio de barganhas políticas e revanchismos, ao arrepio do que pensam e sentem a maioria esmagadora da população feminina brasileira, que têm plena consciência de que é impossível conseguir no Brasil, uma autorização judicial para abortar. Inclusive, porque o judiciário brasileiro é retrógrado e, sobretudo, patrimonialista, patriarcal.

Senhoras, longo e árduo foi a luta das mulheres para transformar o crime de estupro em crime contra a pessoa, tirando tal delito da tipificação de um crime contra os costumes, portanto, o PL 1904/2024, é nada mais, nada menos, que uma nova investida de políticos investidos do poder do voto, contra os direitos da personalidade feminina, para atender uma agenda própria de autopreservação política e poder.

Devemos lembrar que o texto original do Código Penal de 1940, não previa o casamento com a vítima de estupro, como uma das modalidades de extinção da punibilidade: 

No entanto, em 1984, no final da ditadura militar, visando fazer a reforma da parte geral do Código Penal, foi criada uma comissão de juristas incumbida de estudar a legislação penal e de conceber as reformas necessárias.

Referida comissão era composta pelos renomados juristas Francisco de Assis Toledo, Francisco de Assis Serrano Neves, Ricardo Antunes Andreucci, Miguel Reale Júnior, Hélio Fonseca, Rogério Lauria Tucci e René Ariel Dotti, Dínio de Santis Garcia, Jair Leonardo Lopes, que na ocasião entenderam como boa prática penal, incluir como causa de extinção da punibilidade o casamento do estuprador com a vítima, nos crimes contra os costumes, definidos nos Capítulos I, II e III do Título VI da Parte Especial do Código Penal.

Veja que entres os nomes que ajudaram a incluir no Código penal brasileiro, a possibilidade de um homem, não receber punição pela prática de um crime sexual, em pleno século XX, estão juristas de prestígio, cujos livros ajudaram a formar milhares de mulheres em direito, nas últimas quatro décadas, inclusive, eu, sem que tivéssemos qualquer informação sobre a participação deles no intento.

Assim, o Código Civil de 1940, depois da alteração feita pelos nobres juristas “patriotas”, passou a vigorar da seguinte forma:

TÍTULO VIII

DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE

Extinção da punibilidade.

Art. 107 - Extingue-se a punibilidade:

(...)

VII - pelo casamento do agente com a vítima, nos crimes contra os costumes, definidos nos Capítulos I, II e III do Título VI da Parte Especial deste código.

VIII - pelo casamento da vítima com terceiro, nos crimes referidos no inciso anterior, se cometidos sem violência real ou grave ameaça e desde que a ofendida não requeira o prosseguimento do inquérito policial ou da ação penal no prazo de sessenta dias a contar da celebração;

(...)

E, caso a leitora tenha dúvida, se tais dispositivos tenham sido utilizados, após 1988, coleciono a seguir, o julgamento de Supremo Tribunal Federal de 2003, quinze anos após a promulgação da Constituição, onde foi acatado o inciso VIII do art. 107 do CP, em detrimento do que estabelece o inciso III do art. 5º da CFR, que determina que ninguém seria submetido a tratamento desumano ou degradante, os ministros não tiveram qualquer pudor em extinguir a punibilidade de um estuprador, nos seguintes termos:

Estupro: extinção da punibilidade pelo casamento da ofendida com terceiro (CPen, art. 107, VIII): não incidência na hipótese de violência real. O estupro com violência real - a cuja caracterização basta que o dissenso da ofendida haja sido vencido mediante emprego efetivo da força física - basta a afastar a extinção da punibilidade pelo casamento da ofendida com terceiro, sendo irrelevante que do fato não haja resultado lesões corporais de natureza grave. (STF - HC: 83069 MG, Relator: SEPÚLVEDA PERTENCE, Data de Julgamento: 24/06/2003, Primeira Turma, Data de Publicação: DJ 15-08-2003, PP-00020 EMENT VOL.-02119-01 PP-00083)[1]

Portanto, o PL 1904/2024 só assustou a mulher que não tem nenhum conhecimento de sua própria condição em terras brasileiras.

A luta só está iniciando.

 

 

 


[1] JUSBRASIL.  Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stf/770773. Acessado em 22 de setembro de 2023.

 

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